O recurso a substâncias psicoativas, quando se torna abusivo e central na vida de alguém, levanta questões profundas e dolorosas. Para além dos efeitos químicos e das consequências sociais, a psicanálise se interroga: O que se busca (ou se evita) no refúgio das substâncias? É possível encontrar outras formas de lidar com o vazio e a angústia?
Freud, em “O Mal-Estar na Civilização” (1930), já apontava que o ser humano busca incessantemente a felicidade e o afastamento do sofrimento. Entre os métodos paliativos para suportar as dores da existência, ele menciona os “entorpecentes”, capazes de nos tornar insensíveis ao desprazer. A substância, nessa perspectiva, pode surgir como uma tentativa de modular o afeto, de produzir um alívio químico para um mal-estar psíquico que não encontra outras vias de expressão ou elaboração. Ela pode funcionar como uma “satisfação substitutiva” precária, que tampona a angústia, mas que, ao mesmo tempo, aprisiona o sujeito em um ciclo de repetição e, frequentemente, de autodestruição.
A teoria lacaniana nos permite avançar na compreensão da função singular que a droga pode adquirir para cada sujeito. Para Lacan, o ser humano é marcado por uma falta estrutural, um “vazio” que o desejo tenta contornar, mas nunca preencher completamente. A substância pode ser utilizada na tentativa ilusória de obturar essa falta, de alcançar uma jouissance (uma fruição) que se apresentaria como plena e imediata, curto-circuitando a mediação da palavra e do laço com o Outro. Em alguns casos, como apontado por autores da orientação lacaniana, o recurso à droga pode ser uma tentativa radical de lidar com um Real insuportável, ou de forjar uma suplência para uma falha na estrutura. A referência ao Seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-1976), onde Lacan trabalha a ideia do sinthoma como aquilo que permite a um sujeito “saber fazer com” o seu Real, pode, por extensão, iluminar a busca por um “arranjo” através da substância, ainda que problemático.
A questão crucial é que esse “refúgio” nas substâncias, embora possa oferecer um alívio momentâneo, geralmente intensifica o vazio e a angústia a longo prazo, comprometendo os laços sociais, a capacidade de desejar e de encontrar satisfações mais duradouras e construtivas.
A psicanálise, ao contrário de abordagens moralizantes ou puramente medicamentosas, oferece um espaço de escuta para o sujeito que faz uso abusivo de substâncias. Não se trata de julgar ou de prescrever abstinência como condição primeira, mas de acolher a palavra desse sujeito, de investigar a função que a droga ocupa em sua economia psíquica singular. O que essa substância nomeia ou silencia? A que falta ela tenta responder? Que tipo de laço, ainda que problemático, ela estabelece?
O tratamento analítico visa permitir que o sujeito possa endereçar sua angústia e seu vazio à palavra, em vez de à substância. Ao falar, ao historiar-se, ao interrogar seu desejo ele pode começar a construir outros modos de satisfação, outras formas de laço social, e encontrar recursos simbólicos para lidar com a falta que é inerente à condição humana. É um convite a trocar a fruição mortífera da droga pela aposta na palavra que pode, sim, libertar e abrir caminhos para um novo modo de viver.
Referências
- FREUD, Sigmund. (1930[1929]). O Mal-Estar na Civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XXI). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
- LACAN, Jacques. (1975-1976). O Seminário, livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
- LACAN, Jacques. (1969-1970). O Seminário, livro 17: O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.