A Travessia do Luto: Entre a Dor da Perda e o (Re)Laçar da Vida

O luto é uma das experiências humanas mais universais e, paradoxalmente, mais singulares. Diante da perda de alguém amado, de um ideal, de um lugar ou mesmo de uma parte de nós mesmos, confrontamo-nos com uma dor que parece intransponível. A questão que emerge, pungente e necessária, é: Como atravessar a dor da perda, ressignificar a ausência e reencontrar um novo laço com a vida e com quem partiu?

Sigmund Freud, em sua obra fundamental “Luto e Melancolia” (1917), descreveu o luto como um trabalho psíquico árduo, mas necessário. Trata-se de um processo que exige que a libido, a energia psíquica investida no objeto perdido, seja gradualmente desligada desse objeto. Esse desligamento é doloroso, pois o sujeito resiste a abandonar uma posição libidinal. O “exame de realidade”, como aponta Freud, mostra que o objeto amado não existe mais e exige que a libido seja retirada de suas ligações com ele. É um trabalho que se faz “peça por peça”, implicando tempo e uma profunda elaboração interna.

Jacques Lacan, por sua vez, avança na compreensão do luto ao enfatizar a dimensão simbólica da perda. A morte de um ente querido, por exemplo, não é apenas a ausência de uma presença física, mas a criação de um “furo no Real”, um vazio que desestabiliza o universo simbólico do sujeito. O trabalho do luto, nesse sentido, implicaria não apenas o desligamento libidinal freudiano, mas também um remanejamento simbólico. Como Lacan explora, especialmente em seu Seminário, livro 6: O Desejo e sua Interpretação (1958-1959), o desejo está intrinsecamente ligado à falta e à cadeia significante. A perda de um objeto amado é a perda de um significante fundamental que organizava essa cadeia para o sujeito.

Ressignificar a ausência, então, não é esquecer quem partiu, mas encontrar um novo lugar para esse outro em nossa paisagem interna, em nossa memória e em nossa fala. É poder falar da perda, nomear a dor, e, pouco a pouco, transformar o objeto perdido de uma presença dolorosamente ausente em uma ausência presentificada de outra maneira, através de lembranças, do legado simbólico, ou mesmo da constatação do vazio que ele deixa e que, paradoxalmente, pode impulsionar o sujeito a novos investimentos.

Reencontrar um novo laço com a vida e, de forma diferente, com quem partiu, é o horizonte do trabalho de luto. A psicanálise oferece um espaço de escuta privilegiado para essa travessia. No setting analítico, o sujeito pode dar voz à sua dor, às suas ambivalências, às suas lembranças, sem a pressa ou as injunções sociais que muitas vezes silenciam o enlutado. É um lugar para que o trabalho psíquico do luto possa se desdobrar, permitindo que a libido, uma vez desligada do objeto perdido, possa ser reinvestida em novos objetos, em novos projetos, e que o sujeito possa, enfim, retomar seu caminho, marcado pela perda, mas não paralisado por ela. A análise possibilita que o sujeito não apenas “supere” a perda, mas que a integre à sua história, encontrando uma nova forma de se relacionar com a falta e com o desejo.

Referências

  • FREUD, Sigmund. (1917[1915]). Luto e Melancolia. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
  • LACAN, Jacques. (1958-1959). O Seminário, livro 6: O Desejo e sua Interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2016.
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